1.8.08

Hoje eu preciso falar um pouco mais

Fui visitar Sonia, ontem, no início da serra, onde vive encastelada – ora é rainha, ora alice, ora a lagarta. Fui levar um abraço a quem sabia triste, pela perda do mestre. Estava mesmo tristonha, pintando molduras para os novos trabalhos. Amarelas, em homenagem ao mestre.

- Ele era um alquimista. Um dia, fui a seu ateliê e ele estava misturando cores e me disse feliz que estava “fazendo ouro”. Sonia foi aluna do mestre Athos Bulcão.

Tomamos café, comemos melão, conversamos sobre Calvino, 2012, as agruras cotidianas, a pressa angustiante do mundo. Sobre a falta que o Athos faz.

Peguei o carro ladeira abaixo e voltei para o Plano Piloto, lavar o carro empoeirado da visita ao castelo – e a outros tantos caminhos poeirentos nestes dias secos. Li uma entrevista antiga do Fidel, outra do Figueiredo. Quanto contraste. À noite, não quis ver o noticiário, achei tão pobre tudo o que vira durante o dia sobre a morte do Athos...

Hoje acordei 19 anos atrás.

Recém-chegada em Brasília, resolvi fazer algumas aulas de pintura, conversei com Elder Rocha Lima, o filho, que aceitou ser meu professor. Mas durou pouco nosso contato. Ele ganhou uma bolsa e foi para Londres fazer mestrado. Me disse que tinha uma amiga, Sonia Paiva, que também era artista plástica, dava aulas no ateliê. Não fui.

O jornal – trabalhava na Folha de S.Paulo, na época – me tomava muito tempo, mas mesmo assim continuei pintando em casa, no meio da sala, para desespero do Aguinaldo Nogueira e da Rosana Bond, jornalistas que dividiam o espaço comigo, na 405 Sul. Um dia resolvi que deveria falar com Athos Bulcão, mostrar as minhas pinturas para ele. Consegui o número do telefone, falei diretamente com ele, marcamos um chá. No apartamento dele. Às 17h.

Cheguei apressada, no dia marcado, uma tela de saco com umas pinturas estranhas multicoloridas. Falei muito. O que pensava daquela pintura, que era jornalista, e que devia estar atrasada para alguma coisa. Sentia-me muito íntima. Afinal, convivia com seus azulejos do Parque da Cidade, a lateral do Teatro Nacional, as entradas de muitos prédios, a igrejinha, o Congresso, a treliça linda – e brincante – do Itamaraty. Ele me observava sem pressa, falava sempre pausado e gentil.

No apartamento organizado, o que me chamou a atenção foi a coleção de bolinhas de gude. Lindas, no pote disposto em destaque sobre a mesa de canto. As máscaras despontavam aqui e acolá. O chá, servido por sua escudeira de décadas, estava perfeito. Da arrumação da mesa ao lanchinho propriamente dito.

Pronto, eu havia me desnudado à frente daquele senhor tão educado e observador. Fiquei um pouco envergonhada de toda a minha pressa. Parecia o coelho da Alice: – “.. é tarde, é tarde. Olá! Adeus!”

Athos observou a “tela” e fez as críticas pertinentes. Sim, o que eu precisava era ter aulas de pintura. Pegou um papel e escreveu um bilhete de apresentação. “É uma professora jovem, mas o seu trabalho tem muito a ver com o que ela faz”, ele disse. Depois da tempestade que provoquei no apartamento, Athos me ofereceu carona. Com pouco mais de 70 anos, dirigia a 40km por hora, como previa a placa de trânsito. Os outros motoristas, impacientes, ultrapassavam meu caroneiro que só fez um comentário: “quanta pressa”.

Voltei para casa um misto de feliz e patética. Fui ao Athos para ouvir o que Elder, que também foi aluno dele, havia me recomendado. Fui procurar Sonia Paiva.

8 comentários:

Patrícia Cunegundes disse...

Amei seu relato, queridona. E que coragem, hein! Eu jamais - jamais -teria tido o topete que você teve.

Unknown disse...

Grande garota, admiro você cada vez mais, pela coragem de se expor para um mestre.

Paola disse...

Ninguém melhor para comentar um trabalho artistico. Quando você vai expôr suas obras pra gente ver?

Acho que o Athos Bulcão continuou no mesmo ritmo e foi sem pressa. Ele é que estava certo, a gente corre demais.

Beijo.

Paola

Sonia Paiva disse...

Querida comadre,
adorei o texto
Que bom que,como falou Van Gogh,a vida é redonda, né?
Beijos
Sonia Paiva

Rafaela Céo disse...

Eita bichinha porreta! Não foi por pouco que te escolhi para ser minha orientadora!
Beijo, beijo
Rafa Céo

Cheguei ontem de viagem e fiquei triste que só ao ler os jornais e saber da morte do Athos...

F@! disse...

... Foi uma mistura de inspiração e nostalgia pra mim.

Obrigada por tanta vida :)

Ulli disse...

Nossa! Lindo relato. Admiro que luta pelos sonhos. Mas por que parou? O mundo é uma tela cinza a espera das cores que brotam dos nossos olhos. Parabéns! Amei.

Hull de La Fuente

Renata Reps disse...

Uau, Márcia.
Deveri ter descoberto esse blog antes!

Adorei seu texto, nunca tinha lido suas coisas professora! =)

Beijo grande.